A pandemia além do vírus

A pandemia além do vírus

Por Angelo Marion

Psicanalista e Policial Rodoviário Federal

www.angelopsicanalise.com

  Olhe para o lado ou para o espelho e percebe-se o enorme desafio que a pandemia pelo Coronavírus apresenta. Nesse cenário, chama a atenção dois aspectos, um de ordem teórica e outro de ordem prática.

  Primeiro, a informação (da mídia) traz uma carga negativa enorme com os efeitos de um contágio rápido, por um lado, e a incerteza pela vulnerável fidedignidade da informação, por outro. Assim, na reação em massa, o elemento informação potencializa características próprias do coletivo, levando a resultados incoerentes diante da dicotomia indivíduo x grupo, com grande e grave risco de perdermos a perspectiva individual.

  Freud, na obra “Psicologia das massas e análise do eu” (1921-1923), citando Gustave Le Bon, elucida: “O fato mais singular, numa massa psicológica, é o seguinte: quaisquer que sejam os indivíduos que a compõem, sejam semelhantes ou dessemelhantes o seu tipo de vida, suas ocupações, seu caráter ou sua inteligência, o simples fato de se terem transformado em massa os torna possuidores de uma espécie de alma coletiva. Esta alma os faz sentir, pensar e agir de uma forma bem diferente da que cada um sentiria, pensaria e agiria isoladamente. Certas ideias, certos sentimentos aparecem ou se transformam em atos apenas nos indivíduos em massa. A massa psicológica é um ser provisório, composto de elementos heterogêneos que por um instante se soldaram, exatamente como as células de um organismo formam, com a sua reunião, um ser novo que manifesta características bem diferentes daquelas possuídas por cada uma das células”.

  Notadamente naturalista e não de forma inédita, a ideia de reação em massa, em especial pela qualificação acima quanto à informação, hoje abundante e vulnerável, coloca-nos na lâmina de uma espada cujas bandas trazem, numa: o esforço coletivo baseado na informação diante de uma ameaça real e incontrolável, e noutra: a ameaça de perda definitiva em nosso núcleo afetivo. O fio da espada é o medo.

  Mas qual a importância de mantermos uma perspectiva individual?

 Ora, os danos psíquicos e emocionais que a pandemia traz e que terão efeitos prolongados, tomam força e duração a cada dia que a perspectiva individual é abandonada. Ela que permite sermos um porto seguro.

  Aqui entra o fator prático: você ama os seus e em regra temos a firmeza de que faremos de tudo para preservá-los, a ponto de preferirmos, num caso derradeiro, substituí-los no mais profundo e irreversível sofrimento. Bem, saibam que a reciprocidade em regra também acontece, ou seja, eles também temem que algo de mau aconteça a você. Certo, reconhecemos o vínculo afetivo profundo.

  Agora, a questão que não quer calar: como manter uma relação saudável, protetora e realista, diante de toda a mobilização no controle da pandemia, se você não mantiver seu equilíbrio emocional através da perspectiva individual. Acaso se concebe esse tipo de relação levando em conta a perspectiva do bombardeio de informações? A perspectiva individual permite um filtro para suas decisões e posicionamentos.

 Sendo um pouco mais objetivo: caso você, sem perspectiva individual, deixa de filtrar as informações e se deixar levar pela reação da massa, vai conseguir dar saúde, segurança e realidade aos seus? Não há o risco de estar em desequilíbrio emocional, tornando todos mais vulneráveis a uma infecção viral (que em regra passa com a imunização pelas defesas do nosso organismo) e ainda com sequelas afetivas e emocionais prolongadas? Uma coisa é tomar as precauções necessárias como a higienização e o isolamento social, outra é amedrontar a todos sob a ameaça de morte (mesmo que velada e bem intencionada). É uma guerra ímpia, podemos perder, mas não podemos deixar de pensar, pois não podemos colaborar com as dificuldades que possam se apresentar.

  Daí chegamos ao fio da espada: o medo. Sim, os que trabalham como agentes de segurança pública, esses são destemidos, mas temos um coração e uma mente que precisam estar equilibradas, também por nós, mas principalmente em prol dos nossos. Mais uma vez a qualidade dos vínculos afetivos se faz presente.

 E pasmem, o objeto de toda essa mobilização é o medo da morte (ou não?), especialmente no que diz respeito às pessoas amadas, afinal, em geral não se teme uma gripe. Medo com o qual nos acostumamos quando é enfrentado profissionalmente e que, entretanto, surge como o temor de Zanoni pela vida de Viola, quando se trata dos outros. E lembrem, os outros também têm medo por nós (não só na pandemia, mas a cada dia que saímos para trabalhar).

 Por tudo isso, a situação coloca-nos frente à possibilidade direta e real da perda dessas pessoas, mas isso não nos isenta de zelar por toda estrutura que os envolve: além de evitar a tragédia devemos evitar o sofrimento afetivo. Bem-vindos à idade adulta e suas responsabilidades afetivas!

 Essa situação complexa e real, por sua vez, remete ao sentimento profundo e, assim, à perspectiva da espiritualidade. Embora não prevista na introdução, cabe dizer que a perspectiva da espiritualidade é pertinente e necessária. Até Freud, tido erroneamente como ateu em alguns círculos, na iminência da Primeira Guerra Mundial, onde seus familiares lutariam, abdicou do racional e tornou-se para além dos seus limites, conforme escreveu a Lou Andreas-Salomé, em 1914: “Não tenho dúvidas de que a humanidade sobreviverá até mesmo a esta guerra, mas tenho certeza de que para mim e meus contemporâneos o mundo jamais será novamente um lugar feliz. […] Somos forçados a abdicar e o Grande Desconhecido, Ele ou Alguma Coisa, emboscado atrás do Destino algum dia repetirá esta experiência com uma outra raça” (S. Freud e Lou Andreas-Salomé. Correspondência completa, p. 35).

  Sim, a superação do medo é possível pela consciência e pela espiritualidade (intimamente entendo que são essencialmente ligadas). Quando o medo é superado podemos ser heróis para alguém. Isso significa o enfrentamento dos fatos, especialmente quando nosso consciente está ameaçado pelos efeitos da massa e pela pulsão da destruição dirigida a quem queremos preservar; e quer dizer também a direção do olhar ao sublime, à espiritualidade, sustentáculo da nossa existência como pessoas dotadas de consciência.

Fiquem bem!