Coragem, criança! Paciência, meu velho!
Por Angelo Marion
Psicanalista e Policial Rodoviário Federal
Nessa época de isolamento social temos a experiência do convívio prolongado, passando mais tempo com as pessoas afetivamente próximas, ao contrário do habitual, onde passávamos mais tempo com colegas de trabalho ou clientes. Passamos hoje mais tempo com cônjuges, pais e filhos.
Assim, nos deparamos com um contato intenso com pessoas afetivamente significativas e diferentes de nós, cada uma em um estágio de desenvolvimento, experiência e maturidade.
Bem, temos a ideia geral que adultos são pessoas formadas, aptas a produzir e estabelecer a estrutura familiar e social. Impúberes e idosos são vistos como pessoas fora do parâmetro produtivo que a sociedade, em especial a consumista, coloca como padrão.
Freud coloca o desenvolvimento libidinal como que estabelecido após a fase genital, aproximadamente a partir da puberdade, considerando que a partir daí a pessoa apenas estaria preocupada em tratar as eventuais neuroses, decorrentes desse processo de desenvolvimento, sendo que o autor recomenda, em obra de sua época, que a psicanálise seja aplicada a pessoas que tenham até em torno dos cinquenta anos de idade. O Estatuto da Criança e do Adolescente caracteriza a condição da criança e do adolescente no seu art. 15: “A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis. Isolamento social” (grifo nosso). Por seu turno, o Estatuto do Idoso traz no art. 2o: “O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade” (grifo nosso).
Tanto a teoria do desenvolvimento libidinal de Freud, quanto os Estatutos referidos (sem pouco elogio ao caráter protecionista dessas leis), levam em conta, aparentemente, a fase adulta como a oportunidade da plenitude pessoal e social, sendo a criança e o adolescente carentes desse desenvolvimento, e os idosos como pessoas que devem ter o aperfeiçoamento garantido por um sistema, e não por eles mesmos. Sim, de fato numa observação estanque tais condições são perceptíveis, entretanto, na dinâmica das relações essas percepções ensejam uma postura diferenciada, permeada pela sensibilidade e por um processo de conscientização.
Esse quadro pode ser interpretado por dois prismas: a sua relação com crianças, adolescentes e idosos e, por outro lado, a sua relação consigo e sua estrutura afetiva.
Crianças e adolescente são pessoas em desenvolvimento (as primeiras abundam em criatividade e os segundos agem sem querer, sem dolo). São seres que querem tornar-se pessoas. Especialmente se adotarmos uma visão evolucionista, não há como considerá-los menos inteligentes ou capazes que os adultos, apenas não estão desenvolvidos e cabe aos adultos serem de fato adultos – percebendo que talvez não estejam aptos a proporcionar o desenvolvimento em algum ponto de crianças e adolescentes, que estão numa versão aprimorada de seres humanos – respeitando os neófitos da vida e assumindo a responsabilidade por isso.
Idosos são pessoas cuja vida, com todas suas vicissitudes, permitiu-lhes conhecer a aplicação de leis que, como adultos, supomos manejar e direcionar, e por isso merecem, no mínimo, respeito. Um exemplo simples e concreto: a lei da gravidade, seja sua atuação na anatomia ou na dificuldade de subir uma colina. A arrogância do adulto muitas vezes utiliza a condição do idoso como anteparo para afirmar sua posição que, no fundo, sabe ser frágil e transitória.
E a estrutura psíquica do adulto? Tem o desafio de ser forte porém, muitas vezes, sem a coragem de uma criança e sem a paciência de um idoso, e isso reflete nas relações com pais e filhos, ou próximos.
Assim como após um curso de formação ou faculdade você está apto e sujeito a responsabilidades, após a puberdade a vida coloca-se diante de você com seus ônus e bônus. E também assim como novo profissional você aprende a realidade da profissão, muitas vezes diferente do que aprendeu na formação, na vida o aprendizado continua, ou seja, ser adulto não garante toda a plenitude que imagina diante do cenário que a própria vida e as interações apresentam. Essa crença na supremacia adulta pode interessar ao mercado, à indústria, às relações sociais, mas pode não ser efetiva, servindo apenas para esconder o fato de que somos em parte crianças, e o futuro chega a cada instante, trazendo a velhice. Algumas pessoas chegam a ter medo de resgatarem sua criança e de projetarem o idoso em si.
As fases de desenvolvimento, sejam na visão psicanalítica ou no aspecto social, não são estanques, substitutivas, mas sim cumulativas, integradas, em última análise, evolutivas. Quer dizer, não há necessidade de tratar a criança como ser incompleto para firmar sua posição de adulto educador, tampouco é necessário ser arrogante com o idoso para evitar seu inevitável declínio de adulto. O idoso já está lá, você está aqui, sem garantia que chegará lá, portanto, coloque-se em seu lugar.
Vale muito a pena utilizar, como adulto que é, seu lado infantil ou adolescente para tratar e orientar uma criança ou adolescente, inclusive ela vai entender com maior facilidade. Também vale muito a pena fazer uso, como pessoa adulta e madura que é, do seu lado idoso para tratar e ajudar um idoso, e arrisco dizer que em todos os casos você tem muito a ganhar e a aprender com percepções que a visão estritamente adulta não proporciona.
Todos os aspectos colocados acima ganham intensidade e complexidade à medida que tratamos pessoas com quem temos um vínculo afetivo, cujas abordagens caberiam num tratado, demasiadas extensas para este artigo.
Diante disso ficam dois questionamentos para reflexão: primeiro, especialmente no nosso sistema de ensino moral e afetivo, quantas vezes tomamos uma falsa atitude de adultos sem considerar o potencial moral e afetivo das crianças e adolescentes, para que tenhamos a impressão de ser adultos plenos, apenas por estarem diante de nós esses seres cuja formação está sob nossa responsabilidade? E muitas vezes sufocando neles aquilo que não pudemos desenvolver? Segundo, em especial num sistema que segrega o velho, em quais situações consideramos que o futuro não chegaria até nós, a ponto de julgarmos (e às vezes condenarmos sem direito à defesa) o idoso que, de uma forma ou outra, com erros e acertos (como se você adulto não errasse) permitiu e viabilizou a sua existência e a possibilidade de evoluir como pessoa?
Coragem, criança! Paciência, meu velho!
Fiquem bem!