Máscaras? Talvez, mas também uma defesa da existência

Máscaras? Talvez, mas também uma defesa da existência

Por Angelo Marion

Psicanalista e Policial Rodoviário Federal

www.angelopsicanalise.com

 

– Cadê a criança? – exclama alguém no grupo de adultos parentes da criança. Todos procuram a criança.

  – Mas você não viu aonde ela foi? Não cuidou dela? – indaga Fulano, integrante do grupo, para outro.

  O fato é um só: adultos descuidaram-se da criança e não perceberam, entretidos com a conversa, que ela saíra de perto deles.

  Objetivamente, qual a prioridade numa situação dessas? Sim, encontrar a criança. Responsabilizar alguém não é prioridade, entretanto, alguém teve essa preocupação como prioridade.

  Essa prioridade errônea de Fulano, estabelecida de forma intencional ou não, traduziu-se no comportamento de acusar ou “cobrar” alguém pela situação indesejada, porém, mesmo de forma intencional, o que levou a esse erro de prioridade? Qual a necessidade de se acusar alguém, prioritariamente à busca da criança? Mesmo que o tenha feito com o fim de exculpar-se pela negligência, colocando a responsabilidade em outra pessoa, se indagado sobre o porquê disso, o acusador dificilmente responderá além de “eu não sou culpado” ou “o outro é descuidado”. Respostas causais ainda são inconscientes.

  Entraram em cena as chamadas “defesas do ego”.

  Tais defesas não são boas ou más, haja vista que servem exatamente para proteger o ego, essa instância (ou mecanismo) psíquica que intermedeia o id (pulsões) e o super-ego (regras de convivência), além de proteger a integridade da personalidade e do pensamento. Porém, o exagero ou a inadequação geram conflitos e sofrimentos próprios de uma neurose, interferindo na vivência e convivência saudável no âmbito pessoal, social, familiar, profissional e outras interações.

  A situação descrita no início é típica da defesa do ego denominada projeção, ou seja, a pessoa projeta na outra (ou numa situação) um erro ou responsabilidade que sabe ser seu, solidariamente ou não. Anna Freud escreveu especificamente sobre os mecanismos de defesa do ego, mas Freud, seu pai, já os mencionara em 1937, afirmando que falsificam a percepção interna do sujeito, fornecendo apenas uma representação imperfeita e deformada, por isso a dificuldade em ser objetivo.

  É comum, na atividade policial, vermos casos de projeção das pessoas flagradas em uma infração de trânsito, afinal, dificilmente alguém, simplesmente, assume que cometeu uma infração. A maioria fica dando desculpas, inclusive esfarrapadas, para justificar o erro, sendo prioridade exculpar-se da responsabilidade. É para evitar a multa? Pode ser, mas para que tentar justificar com situações que não são justificáveis, sabendo que a penalidade será aplicada? Não seria mais objetivo lamentar o prejuízo financeiro?

  Bem, no caso da criança sumida, tenta negar o desejo de livrar-se de compromissos de cuidado e atenção para com as pessoas. Os que foram prioritariamente procurar a criança, de fato, podem ter tido apenas uma distração. Por que tentou negar esse desejo? Para não perder o afeto, quando não se comprometeu com alguém, ameaça essa lá do passado, na infância… ou seja, caso não se preocupar com alguém, vai ficar sem afeto. Melhor esconder essa despreocupação acusando outra pessoa.

  Ainda como exemplo, outra defesa do ego é percebida quando o infrator, ao ser flagrado e ter anunciada a autuação, pede desculpas ou perdão ao agente, às vezes de forma repetida e insistente. Ora, a infração não é uma ofensa ao agente, e na maioria das vezes não põe em risco a sua integridade, logo, para que pedir desculpas? Poderia fazer isso aos ocupantes do veículo, cuja integridade foi ameaçada com a infração. É típico da defesa do ego denominada deslocamento, ou seja, diante da figura de autoridade invocada pelo agente, o infrator imediatamente reporta-se ao comportamento submisso – por que não infantil? – tal como fizera com seus pais, ou ainda compensando a rebeldia exarcebada para com os pais. Em geral, relaciona-se ao complexo de Édipo. O objeto que não deseja perder são os pais, e para não perder esse objeto afetivo, os reconhece na figura do policial, e desculpa-se, submetendo-se e assim garantindo que, mais uma vez, não fique sem afeto. Caso a reação do agente não seja objetiva, em geral a submissão é substituída pela raiva e rebeldia. Já viram isso?

  Por outro lado, quantas vezes presenciamos esse erro de prioridade numa situação operacional, fugindo da técnica e colocando a própria integridade em risco? Quantas vezes eu fiquei indignado e fui ríspido diante de uma infração, sem necessidade, percebendo depois que minha reação foi apenas uma necessidade emocional?

  Existem outros mecanismos de defesa do ego, como a negação, a sublimação, a reação projetiva, dentre outras classificações, cujas características podem ser facilmente encontradas na literatura, inclusive na de domínio público.

 Mais uma vez, evidencia-se a importância das relações afetivas – mais qualitativa que quantitativamente – como base da vida emocional, e, dentro do determinismo psíquico, como fundamenal para a realização e plenitude, seja como indivíduo ou nas diversas interações próprias da convivência. 

  Defesas do ego são necessárias, mas sua inadequação ou abuso podem indicar sofrimento nas relações intra e interpessoais.

  Enfim, essas defesas são inerentes ao mecanismo psíquico, necessárias à existência da pessoa íntegra e personalizada, cujo conhecimento e conscientização levam à saúde emocional e à qualidade de vida sustentável.

  Fiquem bem!