Processo civilizatório e o  estelionato do afeto

Processo civilizatório e o estelionato do afeto

Por Angelo Marion
Psicanalista e Policial Rodoviário Federal
www.angelopsicanalise.com
 

  Não há dúvida que o processo civilizatório é pressuposto da vida em sociedade. Se fôssemos agir apenas de acordo com nossas pulsões, nosso instinto, a vida social seria inviável, retornaríamos à barbárie.

  Anna Freud desenvolveu um trabalho para educar crianças, na esperança de afastar a atuação do inconsciente na vida delas, pois, especialmente na América da época, esse inconsciente significou forças destrutivas que deveriam ser controladas. Equivocou-se, seus métodos foram úteis à indústria do marketing, mas houve relato de suicídio adulto dentre crianças submetidas à sua metodologia de educação, que basicamente colocava a mera conformação às regras sociais e morais como forma de educar.

 

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  Mais uma vez, com sobriedade, o trabalho de Sigmund Freud, pai de Anna, traz esclarecimento sobre a relação das pulsões e o processo civilizatório: a neurose é produto próprio do processo civilizatório, até por que existem graus das pulsões que não são comportamentais, tem origem genética, pertencentes à espécie humana nos níveis mais primários (a teoria epigenética ajudaria?). Assim, a educação e a civilização são necessários, tendo a neurose, em maior ou menor grau, com ou sem sofrimento, presença na vida das pessoas civilizadas.

  Repito: se fôssemos agir apenas de acordo com nossas pulsões, nosso instinto, a vida social seria inviável, retornaríamos à barbárie. E acaso não temos essa ameaça num conflito nuclear? Mesmo sendo os civilizados os responsáveis por essa ameaça? Algo precisa ser repensado, esclarecido, trazido à consciência!

 Ora, é certo também que a origem das neuroses está diretamente relacionada à conquista e manutenção do afeto, sendo certo dizer que os processos civilizatórios, em especial com relação à moral, são traumáticos à medida que o civilizando os percebe como condicionantes ou bloqueadores do afeto.

 A questão é que as pessoas responsáveis pela civilização de outros, especialmente pais, responsáveis e professores, também trazem essa condição de afetados pelo processo civilizatório a que foram submetidos, e muitas vezes, inconscientemente, agem como verdadeiros estelionatários de afeto. Chantagem, obsessão, abuso e violência afetivas são formas de apropriar-se de algo natural como afeto, a fim de obter vantagem para a própria formação neurótica. A pergunta importante é: estou dando limites para que seja um adulto sadio? Para que seja bem-quisto na sociedade? Ou para satisfazer minha necessidade de obter/equilibrar meu afeto nessa relação?

 É necessário, então, uma revisão constante do que se faz em termos de adaptação dos seres humanos à vida civilizada, até porque esse processo é também influenciado por questões inconscientes. Por exemplo, quando Anna Freud buscou uma educação para a contenção das forças inconscientes, o contexto foi marcado pelos horrores da segunda guerra mundial, onde a preocupação foi entender o nazismo como manifestação pura dessas forças, logo, deveriam ser contidas. Assim, um pai ou mãe que foram educados numa relação afetiva desequilibrada tendem a educar seus filhos tendo como matriz essa relação desequilibrada.

 Por isso a Psicanálise tem virtudes plausíveis: considera a vida afetiva de cada pessoa, com base na percepção dela mesma. Não é a submissão de histórias individuais a um modelo pretendido ou pré-determinado, mas, ao contrário de outras abordagens, é a busca de resultados positivos a partir da submissão de um modelo a variáveis próprias da vida de cada pessoa. Entenda: o fato de uma pessoa ter consciência das suas pulsões não faz dela um louco, um assassino ou um animal.

 O processo civilizatório exige um esforço hercúleo de pais, responsáveis ou professores, pois deixam de lado suas imperfeições, na tentativa de permitir a convivência e a permanência humana na Terra. Isso é mais difícil à medida que se aproxima do núcleo familiar, origem do afeto, e onde esse afeto é mais vulnerável ao desequilíbrio. É difícil não ser estelionatário de afeto. Às vezes esse estelionato leva para longe, ou para outros focos, o afeto que deveria ser dirigido a uma criança, e assim vemos jovens cometendo suicídio ou automutilação, dentre outras mazelas.

 É um círculo com um ciclo vicioso que tem uma origem longínqua e profunda, mas cujo destino pode ser melhorado a partir da civilização das crianças – e por que não adultos? – com melhor qualidade afetiva. Mas, melhor ainda será esse destino se começarmos a melhorar a nós mesmos, a começar pela reflexão crítica sobre o que aqui está escrito, buscando a consciência do que e quem somos. A solução parte do círculo: a quebra do ciclo é base para a espiral da evolução!

 Fiquem bem!