Novas emergências,  velhas surpresas

Novas emergências, velhas surpresas

Por Angelo Marion

Psicanalista e Policial Rodoviário Federal
www.angelopsicanalise.com

  Isolamento social: as pessoas em casa evitando contato com outras, estranhas ao ambiente residencial, e com locais de grande circulação. Sim, uma medida preventiva diante da pandemia da COVID-19.

  As percepções que temos, a partir desse fato, indicam situações pessoais ou relacionais diferentes daquelas da rotina normal. Muitas vezes, o isolamento provoca alterações afetivas e emocionais antes desconhecidas, oriundas da própria situação de segregação e limitação, inclusive na capacidade de ir e vir. 

  Entretanto, as percepções desse contexto não são novidade em boa parte. 

  No que toca à percepção de si, a novidade predominante: o que fazer? Afinal, o ócio estabelecido tem atividades limitadas como contraponto. Faxinas e reformas são concluídas e o lazer fica monótono, pois até a maratona de séries não se diferencia diante do nada a fazer. A busca desenfreada e repetitiva por atividade pode revelar um caso de TOC (transtorno obsessivo-compulsivo) ou, em casos graves, especialmente diante da situação coletiva, um estado de paranoia. Veja que essas alterações podem ser reveladas e não surgidas devido ao isolamento, pois a fragilidade afetivo-emocional já existia.

  Nossa estrutura psíquica possui fragilidades que, em situações normais podem não ser percebidas e, nessa situação em que a rotina que nos absorve está alterada, vêm à tona de forma surpreendente, como se fosse algo criado agora, apenas sob essa condição.

  E quando o isolamento e a pandemia passarem? Daí você fica de um lado, aliviado pela volta da vida “normal” e, de outro, com um lampejo de consciência da situação real do seu aparelho psíquico. Há duas opções: alimentar o medo de encarar suas profundezas, com o mergulho na rotina novamente ou, e isso requer coragem, buscar conhecer-se melhor, tirando proveito da experiência e subindo o padrão da qualidade da vida afetiva.

  Por hora medite, relaxe, ame, ore, trabalhe como possível ou apenas adote uma postura de austeridade, reconhecendo que somos, sim, apenas seres transitórios em busca de aprendizado. Não é conformar-se, mas aprender!

  No que diz respeito à percepção dos relacionamentos, o isolamento não é individual, mas com no mínimo outra pessoa e, na maioria dos casos, são essas duas pessoas que passam horas e horas juntas, sem compromissos, sem rotina, sem pressa… em casos onde há mais pessoas, esse quadro se repete, porém em maior complexidade.

  É a oportunidade de averiguar sobre quais valores os relacionamentos afetivos estão alicerçados e, de novo, fica evidenciado a qualidade afetiva dos relacionamentos.

  Essa semana ouvi um relato feliz, onde uma pessoa empresária, professora, com uma rotina considerável, disse estar sentindo como se estivesse novamente com seis meses de casada, ao deparar-se fazendo bolo e feijão novo para o jantar com o marido. Ou seja, está sendo uma boa experiência o isolamento, tendo agora a possibilidade de utilizar-se dessa memória para melhora da qualidade do relacionamento quando o isolamento passar.

  Também tenho ouvido relatos preocupantes, em que as pessoas envolvidas, além de estarem lidando com percepções próprias antes não conhecidas, estão tendo a dimensão de quão inadequados são seus relacionamentos, que apenas trazem satisfação enquanto envoltos numa rotina ou condições que sustentam tais relacionamentos, quer dizer, o relacionamento, o vínculo afetivo em si, não existe ou é frágil. Nesse caso é hora de construir as bases de um relacionamento saudável, sobrepor-se às aparências e ilusões e quem sabe, firmar o amor para quando o isolamento acabar. Ou, em outros casos, adquirir consciência da ilusão criada e buscar a solução que traga satisfação e realidade, afinal, se alguém não cuida de si, não tem condição de cuidar de outrem.

  Sabe aquele momento em que vemos o amor como algo sublime e desapegado do mundo que nos circunda (em geral quando apaixonados)? Pois é, seja esse amor uma necessidade afetiva, um compromisso ou apenas uma emoção, é a oportunidade de reavaliar esses momentos, sendo necessário humildade. Muito se tem falado em humildade intelectual, no sentido de buscarmos soluções entre conflitos de ideias e aplicação do conhecimento de forma ética. Agora é momento de exercitar a humildade afetiva, a começar pelo reconhecimento de que não conhecemos totalmente nossos afetos e emoções. É reconhecer que a caminhada para o autoconhecimento e a evolução é longa, mas nesse momento temos um entreposto para continuarmos.

  Dessa forma, o isolamento traz oportunidades de revisarmos nossa vida, nossos rumos, nossos valores, relacionamentos e, principalmente, revisarmos nossa própria existência. Temos a oportunidade de identificarmos o que seja verdadeiro à mente e ao coração, onde percebemos fatos antes desconhecidos, inconscientes, que agora apresentam-se claros à consciência, restando-nos decidir de forma madura, saudável e com livre arbítrio o que fazer com essas velhas surpresas.

  Fiquem bem!